"São os artistas medíocres que se queixam da Inteligência Artificial”
Controvérsia e ética de mãos dadas: o que vamos considerar arte no futuro?
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O escritório de Mário Freitas não deixa dúvidas a quem o visita. Com uma parede totalmente revestida com capas de edições especiais, o autor e editor de bandas desenhadas não esconde o seu apreço por romances gráficos. Bateria e guitarras no canto, a arte é mais que um mero capítulo na sua vida pessoal e profissional.
O vencedor do Melhor Argumento dos Prémios Nacionais do Amadora BD (2016) conhece bem os cantos da casa criativa. Fala-me das suas obras publicadas e do (pequeno) mercado de livros ilustrados em Portugal, onde considera que a banda desenhada "se faz por carolice". Momentos depois, solta uma voraz crítica a Stan Lee, o homem por trás da Marvel, a quem apelida de "o maior usurpador de criações à face da Terra".
Inserido neste mundo “desde que se lembra", aventurou-se por terras desbravadas em 2022, ao publicar o primeiro livro de banda desenhada portuguesa ilustrado com o auxílio de inteligência artificial (IA) - A Polaroid em Branco.
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Uma "não cara" e a Fada do Bigode
Não era sua intenção. Frustrado com a demorada adaptação de alguns dos seus guiões, decidiu fazer umas brincadeiras com o MidJourney, um programa que gera imagens através de descrições pormenorizadas. Já não se recorda do que pesquisou ao certo. "Foi qualquer coisa a ver com o Tintin e o Professor Girassol" diz-me, reiterando de seguida que "o MidJourney raramente faz aquilo que gostaríamos que fizesse".
Não obstante o braço de ferro com o programa de IA, começou a surgir-lhe em catadupa a premissa da história, um ser com uma crise de identidade. "A cara dele era como se fosse uma não cara, e ele a imaginar o que é que a cara dele podia ser na realidade, se ele adotasse diferentes estilos de bigodes e de barbichas e não sei quê, e de repente começou-me a formar a imagem" diz-me, apontando para o livro aberto na mesa. "Isto teve muito trabalho com o photoshop. Esta era uma espécie de bola que não se percebia se era um olho, se era uma bola de pelo". A dado momento, a obra brinda-nos com uma personagem misteriosa que o próprio inventou e trabalhou com o programa de edição, a Fada dos Bigodes.
Mário olha para este projeto como um "devaneio criativo". Uma espécie de diálogo com a inteligência artificial deu origem a uma obra que, de outra forma, "não existiria". Por isso mesmo, considera que "aqui, a inteligência artificial não roubou trabalho a ninguém".
Ainda que a história tenha sido escrita na totalidade por si, e as imagens tenham sido editadas, trabalhadas e organizadas, o argumentista confessa que já foi insultado. "Não te trates não" e "tu não criaste nada" foram algumas das palavras hostis de que foi alvo. "Acho que são pessoas que não têm noção do que é o ato criativo, e concebem apenas a arte como ilustração, como se não houvesse arte na escrita" desabafa.
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Um momento ou uma revolução?
Embora admita que o recurso a IA levante alguns problemas éticos, não hesita em afirmar que "são principalmente os artistas medíocres que eu vejo a queixarem-se". Para o argumentista, muitos dos artistas que se sentem ameaçados por esta revolução tecnológica "não mais fizeram ao longo da carreira do que replicar, copiar e clonar a arte de outros produtos".
O escritor reconhece que o MidJourney cria resultados a partir de imagens criadas por autores reais, mas assume dificuldade em traçar uma linha no que é ou não reprovável. "É um pau de dois gumes, porquê? Por um lado, todos nós humanos, tudo o que fazemos também é uma síntese de tudo o que nos influencia, de tudo o que já foi criado. A questão é que nós demoramos anos a fazê-lo; a inteligência artificial fá-lo em segundos" remata.
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"Sou eu que decido a montagem: se há três, quatro ou cinco vinhetas por página, como é que elas estão montadas, sou eu que faço isso tudo. Fui eu que fiz tudo em photoshop." - Mário Freitas
"Eu desenhei estas três vinhetas, que eram fundamentais para a história. Era impossível que a inteligência artificial me desse isto." - Mário Freitas
A fada dos bigodes. Amigo ou inimigo?
· MidJourney: plataforma de inteligência artificial que transforma descrições textuais em representações visuais de alta qualidade;
· ChatGPT: modelo de inteligência artificial que responde, via mensagem escrita, às mais variadas perguntas ou pedidos, com recurso a uma enorme base de dados.
· Prompt: estímulo dado para ajudar a criar uma resposta ou ação; termo usado para se referir a um sinal ou mensagem que aparece numa interface de linha de comandos (contexto informático).
O conceito de inteligência artificial desperta "muita curiosidade, pois tem muito que se lhe diga", diz-me João Ribeiro. O cofundador e diretor da Shifter - uma plataforma editorial com artigos online e edições temáticas em papel - associa o seu "interesse pessoal muito grande em filosofia e política" à IA, que vê como "uma síntese de muita coisa". Por estudar e escrever sobre estes temas há cerca de quatro anos, vê nestes últimos meses "um momento, e não uma revolução".
Impõe-se, então, a questão. É ou não legítimo recorrer a inteligência artificial para criar algum tipo de arte? A pessoa que o faz pode ser considerada artista? Quais são os limites morais, legais e éticos na sua utilização?
Para João, "na arte é o artista que define as suas regras, é a forma como ele enquadra a sua expressão que depois lhe dá valor ou não". O jornalista considera que a questão não pode ser reduzida a uma resposta dicotómica: "é perfeitamente aceitável que utilizemos, na minha opinião, qualquer tipo de tecnologia para fazer arte, até porque a arte acaba por ser um reflexo dos tempos". Por outro lado, ressalva que modelos como o MidJourney levantam-lhe algumas dúvidas, por existir "uma grande probabilidade de esses dados, imagens e trabalhos de outras pessoas não terem sido obtidos com consentimento, e aí pode ser moralmente reprovável utilizar essas ferramentas sem qualquer pensamento crítico".
A originalidade das obras criadas por inteligência artificial também pode ser considerada dúbia. João fala-me, a propósito de uma entrevista que fez ao filósofo alemão Hannes Bajohr, sobre os limites criativos dos diferentes modelos de IA, uma vez que "são treinados num conjunto de dados, e portanto há ali um bloqueio, um limite que, embora seja invisível para nós, existe de facto, tecnologicamente". Acrescenta que a IA "é um ótimo espelho para nós podermos ver alguns dos reflexos da nossa sociedade contemporânea", lançando a provocação: "se calhar, alguns artistas também não são assim tão originais, não é?".
No entanto, rejeita tomar uma posição definitiva na discussão. Reitera que "se todos aceitarmos que o que é feito no MidJourney com um prompt é arte e merece ir para os museus e ter críticas artísticas e reflexão social sobre isso, não sou eu que vou dizer não. Estas definições acabam por ser tudo resultado de ponderação social."
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Boris Eldagsen com a fotografia - criada com recurso à inteligência artificial - vencedora de um prestigiado prémio nos Sony World Photography Awards. O artista/fotógrafo alemão explica que concorreu com a fotografia gerada por IA para "lançar o debate".
Boris Eldagsen com a fotografia - criada com recurso à inteligência artificial - vencedora de um prestigiado prémio nos Sony World Photography Awards. O artista/fotógrafo alemão explica que concorreu com a fotografia gerada por IA para "lançar o debate".
A verdade é que a inteligência artificial já se infiltrou no mundo artístico global, e a questão terá de ser regulada com caução.
Os primeiros meses deste ano ofereceram-nos Freddy Mercury a interpretar a música Don't Look Back in Anger dos Oasis, e Kurt Cobain a cantar o Black Hole Sun dos Soundgarden. Existem, neste momento, inúmeros exemplos de músicos improváveis a interpretar músicas de outros artistas - ou deveria dizer, modelos de inteligência artificial que conseguem reproduzir, com alguma autenticidade, a voz de artistas à escolha.
Deu-se recentemente um caso insólito que fez correr muita tinta: Jered Chavez, jovem estudante universitário na Florida, lançou na internet uma música escrita e composta por si, mas com uma simulação da voz do famoso rapper Drake. A música virou um sucesso instantâneo, mas acabou por ser retirada de todas as plataformas, devido a uma queixa de copyright da editora do artista. Levanta-se a seguinte questão: se a música não foi escrita nem composta pelo rapper americano nem por nenhum dos seus associados, e se a tecnologia usada para imitar a voz de Drake (e de qualquer outro ser humano) é legal, até que ponto é legítimo que a editora a possa retirar de circulação?
"A arte não é só uma imagem numa tela ou uma música num ficheiro, é um processo de contextualização, de intermediação, de conceptualização, de discurso em torno da obra. Eu acho que nós estamos a cair um bocadinho nesta armadilha de ver a arte muito como o produto final." - João Ribeiro
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E em Terras Lusitanas?
A Polaroid em Branco não é caso único em Portugal no que toca a experimentação artística com recurso a inteligência artificial.
O filme January, de Bruno Carnide, é uma obra portuguesa criada exclusivamente com recurso a ferramentas de IA. A curta-metragem foi recentemente selecionada para a competição do +RAIN Film Fest, um festival de cinema com recurso a inteligência artificial, que vai acontecer em junho em Espanha. Este evento é o primeiro do género na Europa, e o diretor Jordi Balló expressa o desejo de serem "protagonistas de uma nova aventura intelectual e criativa para iniciar um caminho pouco explorado até agora: o de descobrir o que significa fazer filmes com inteligência artificial".
A ameaça na sombra da oportunidade
"Eu não acho que devamos temer a inteligência artificial, não acho que seja essa a questão. Mas acho que, do ponto de vista social, sobretudo, existem questões muito importantes que têm que ser debatidas" refere João, e Mário partilha as suas preocupações. "Se atualmente as fake news já são o que são, se as começarmos a acompanhar com fotografias falsas..." diz o escritor, que confessa a preocupação de ir "buscar informação ao Google, e sei lá se aquilo que lá está como resposta já não são coisas filtradas do ChatGPT".
A evolução tecnológica marcou todas as épocas da humanidade. Desde a invenção da roda à máquina a vapor, ou da lâmpada ao computador, o desenvolvimento resulta inevitavelmente em perdedores e vencedores.
Mário dá-me o exemplo "meio a brincar meio a sério, de como terão reagido os monges copistas quando foi criada a imprensa. O que terão eles pensado sobre o seu trabalho, quando a partir daquele momento podiam facilmente duplicar ou triplicar aquilo que é feito uma vez?".
Curiosamente, João apresenta um exemplo com alguma relação, o debate sobre a utilização de inteligência artificial na tradução: "será que não era melhor termos mais livros traduzidos em português? Não temos assim tantos livros traduzidos para a nossa língua, então se calhar isso [a utilização de IA] não é necessariamente uma ameaça, pode ser uma oportunidade". O diretor da Shifter ressalva, porém, que "se pensarmos numa editora que pode meter a inteligência artificial a traduzir textos em barda, sem revisão, pode ser um problema".
De facto, o verdadeiro perigo da inteligência artificial não parece estar na tecnologia, mas sim na forma como será utilizada. Há seis anos, Kate Crawford - escritora, compositora e cofundadora do Instituto AI Now na New York University School of Law - chamava a atenção para os potenciais perigos do uso da inteligência artificial nas mãos de movimentos autoritários.
De regresso à Arte: Teremos Sequela?
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No calendário há planos, mas não há promessas.
A Polaroid em Branco foi uma experiência espontânea, não algo pensado e planeado com um objetivo. Por isso mesmo, Mário não garante que não volte a criar algo com recurso a inteligência artificial. O argumentista até já tem "uma ideia para uma sequela para essa história", mas porque a ideia já está definida, irá recorrer a um ilustrador humano.
O escritor conta lançar pelo menos três obras suas este ano. Por serem ilustradas por humanos, espera que "isso acalme os Klu Klux Klan com as forquilhas".